em

Feminicídio: Não se nasce mulher, morre-se!

FEMINICÍDIO EM PAUTA

No maior estilo “espreme que sai sangue”, o sensacionalismo parece ser parte integrante das coberturas jornalísticas de feminicídios.

“A Sônia Abrão ligava na minha casa quase todo dia”, desabafa Suzane Jardim, jovem de 24 anos que, em 2013, foi jogada do quarto andar depois de discutir com o homem com quem tinha ficado poucas vezes.

Ainda na UTI sem nenhuma garantia de sobrevivência, ela e sua família foram assediados pela imprensa, que os procurou afirmando a intenção de ajudar.

Dormindo sob o efeito de sedativos 20 horas por dia, Suzane recebeu um homem que acompanhava seu pai durante o horário de visitas, em que era medicada com altas doses de morfina para aguentar o período acordada.

Ela não sabia que conversava, na verdade, com um jornalista e, muito menos, que ele a gravava. No dia seguinte, sua história estava em todos os lugares: Cidade Alerta, O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, G1. “A primeira matéria com que eu tive contato foi a do Estadão. O repórter foi falar com o meu pai, fez todo aquele discurso de ‘quero te ajudar’.

Meu pai conversou com ele, abriu a casa e, quando saiu a matéria, a manchete era ‘Ativista feminista cai do quarto andar e diz que foi vítima de machismo’.

Eu fiquei em choque e me senti idiota, ridícula”, desabafa. “Não tive coragem de contar ao meu pai até hoje, porque ele vinha todo dia no hospital e me falava: ‘Tem um repórter, ele está ajudando o papai, vai dar tudo certo, ele vai por foto do rapaz no jornal’.

Nunca teve foto do rapaz no jornal. Eles riram da cara do meu pai e ele até hoje não sabe.”

 

Não se pode negar que a mídia tem a capacidade de pressionar as investigações. Depois da repercussão de seu caso, Suzane, por exemplo, foi ouvida pelo delegado ainda no hospital. Mas até que ponto expor a vítima e sua família vale à pena?

Qual é o limite ético da reportagem? “É inevitável dizer que se tu for lá falar com a família e mostrar a mãe da menina chorando, o filho da mulher desesperado, o pessoal vai ver. Mas eu não acho que isso vale à pena.

Que contribuição a gente vai trazer para a segurança pública se formos mostrar a família dela?

A gente vai comover? Vai, mas a troco que dê? A troco da desgraça alheia e isso está cheio, infelizmente”, problematiza Dante Graça, editor-executivo do portal D24AM do Diário do Amazonas, baseado em Manaus.

“Eu acho que é muito mais importante, útil e vai colaborar muito mais se, ao invés de dissecarmos toda a história da tragédia daquela família, formos em cima das investigações para acompanhá-las com essa dedicação que muita gente tem para chupar a lágrima até a última gota da família que está desesperada”, conclui.

Por outro lado, há jornalistas que defendam o uso de depoimentos de parentes e fotos para enriquecer as reportagens. “A gente busca fazer uma matéria com a família da vítima, mostrando como era a vida dela, quais eram os planos para o futuro, se ela já tinha sofrido ameaças, para humanizar um pouco.

Por isso, eu oriento os repórteres a pedirem fotos”, relata Camila Henriques, editora do G1 Amazonas. “A polícia acaba se interessando mais pelo caso na hora de investigar”. De maneira geral, os jornalistas se aproveitam da falta de informação que as pessoas têm sobre o funcionamento da mídia para explorar a imagem delas, intimidando-as a participar da reportagem mesmo que contra sua vontade – principalmente daquelas com baixa escolaridade e baixo poder aquisitivo, cujo perfil corresponde ao da maior parte das mulheres mortas por feminicídio. “Claro que tem alguns casos em que os familiares estão mais abertos e querem participar, então eu acho que aí já muda um pouco de figura”, contrapõe Dante.

É o caso de Ari Friedenbach, pai de Liana Friedenbach e vereador da cidade de São Paulo. Quando um menor de idade assassinou sua filha de 16 anos, ele se manteve aberto para dialogar com a imprensa e não se incomodou com o assédio.

“Eu sempre faço questão de ressaltar que os jornalistas foram extremamente respeitosos comigo, desde o mais sensacionalista ao mais elitizado, ajudando muito na época das buscas.

Do dia 30 de outubro até o dia 10 de novembro [de 2003], quando foi encontrado o corpo, a participação da imprensa foi intensíssima.

Mas que ela estava preocupada em vender notícia, isso é óbvio, tanto que a Liana apareceu durante 10 dias, 24 horas por dia, em quase todos os canais de televisão – não porque eles estavam preocupados em encontrá-la, mas porque eles estavam preocupados em vender”, diz. “Minha filha era uma menina de classe média, era toda bonitinha, de olho azul, então dá uma bela capa de revista”.

Se o caso não soa familiar, talvez lhe ajude saber que o assassino de Liana é o Champinha.

Quando para-se para observar, em muitos dos casos o assassino fica tão ou mais conhecido do que a vítima. Champinha, Lindenberg Alves, o Maníaco do Parque, Chico Picadinho, Doca Street: a projeção que todos eles ganharam na mídia os tornou amplamente conhecidos – quem nunca ouviu falar em um destes assassinos? – e os crimes que cometeram são quase exclusivamente associados aos seus nomes, não ao das mulheres que mataram, com a exceção, talvez, de Eloá Pimentel.

“Trata-se outra face da cultura de violência contra as mulheres que é estruturante na nossa sociedade, em que até mesmo nos casos emblemáticos o direito à história, memória e justiça à mulher vítima de assassinato é esquecido”, coloca Marilia Kayano, membro do conselho editorial e coordenadora editorial da Agência Patricia Galvão, uma iniciativa do Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos para atuar na produção de notícias e conteúdos sobre os direitos das mulheres brasileiras, criada em 2009.

Outro ponto a ser questionado é a escolha de termos feita pela mídia. “Existe uma preocupação jornalística de que você precisa fazer as pessoas compreenderem o que está sendo dito. ‘Elas não sabem o que é um feminicídio, mas sabem o que é um assassinato, então vamos de assassinato mesmo’. Isso é um erro, porque você está subestimando a capacidade de compreensão e cognição do seu telespectador, além de não estar colaborando para a formação da ideia de que criminosos que matam mulheres pela condição de serem mulheres estão cometendo um crime específico e, portanto, precisam ser tratados de maneira específica”, aponta Joelson Giordani, editor-chefe e âncora do Jornal Cidade Verde, da TV Cidade Verde, de Teresina. Em detrimento de feminicídio, os jornalistas optam pelo termo genérico homicídio ou ainda assassinato, como também relata o jornalista Dante.

“A gente conhece o termo, sabe o que é, mas procurando no nosso arquivo eu encontrei vários casos de feminicídio e em nenhum o usamos.

Eu me senti até um pouco mal por entender a necessidade de se debater mais o tema, de abordá-lo com a seriedade que merece e, no exercício diário, não conseguir fazer ou nem tentar fazer às vezes, o que é pior. E aí eu vou assumir a culpa, eu acho que a gente nunca tentou fazer”, afirma.

Ele ainda lembra que, como nos casos de latrocínio, em que se explica o termo em poucas palavras logo depois de citá-lo, seria possível transportar para as reportagens sobre feminicídio a mesma prática.

Assim, mesmo que o leitor nunca tenha ouvido tal designação antes, ele consegue compreender do que se trata e começa a se familiarizar com ela.

Além dos comunicadores ainda não terem se apropriado do termo mais novo, existe uma relutância em deixar de lado o antiquado “crime passional”.

A estudante de jornalismo Ana Júlia Gennari estagiou por 3 meses na rádio escuta da Rede Record e conta que lá a palavra feminicídio nunca foi usada. “Na primeira semana eu dei o meu primeiro furo: em uma das várias ligações diárias que recebíamos eu ouvi uma denúncia de um crime de feminicídio.

Quando fui passar o caso para a redação, o redator disse que eu era muito sortuda por ter dado um furo desses na primeira semana, e perguntou se eu estava feliz com isso. E eu disse não. É difícil ficar feliz com um fato desses”, desabafa.

Ela afirma que os casos eram tratados da maneira mais leviana e sensacionalista possível, sempre com a denominação “passional”.

“O feminicídio ainda é uma palavra pouco usada no jornalismo como um todo e na própria polícia”, problematiza a editora Camila. Nas saídas diárias de um repórter de polícia – como são conhecidos aqueles que cobrem este tipo de fato – em busca dos boletins de ocorrência do dia, muitas vezes eles recebem da própria delegacia um documento que traz o termo “crime passional” e, sem questionar seu uso ou refletir sobre o que ele significa, o reproduz em sua matéria.

“A gente faz uma cobertura policial que é quase industrial, uma linha de produção de notícia. O repórter vai para a rua e ele é determinado pelo editor a pegar quase tudo: o cara que foi pego com 20 trouxinhas de maconha, o cara que matou o vizinho dele por causa de uma briga de terreno e o cara que deu 30 facadas na mulher porque ela era mulher e estava incomodando a vida dele. Eu acho que isso atrapalha muito”, reflete Dante.

Para a diretora de jornalismo da TV Cidade Verde e apresentadora do jornal Notícias da Manhã, Nadja Rodrigues, pode ser uma questão de tempo até que aconteça uma adaptação do sistema da justiça e ele passe a adotar o termo.

“A partir do próprio tratamento que a polícia dá, que o Ministério Público dá, a gente da imprensa vai acompanhando”, afirma.

Marilia concorda: “O sistema de justiça nem sempre ajuda a imprensa na identificação dos casos porque como a mídia se informa em geral por meio da polícia e dos operadores dos sistemas de justiça e segurança, se os profissionais não dão ao crime o nome que ele tem, muitas vezes o profissional de comunicação receia identificar erroneamente um caso”.

Culpabilizar a vítima é outro erro recorrente. Busca-se justificar a ação do assassino construindo uma narrativa verossímil, como no caso de Elisângela Biffi, morta pelo ex-companheiro em outubro deste ano.

Algumas matérias, inclusive de grandes veículos, afirmaram que a moça era lutadora de karatê e que seu parceiro já havia registrado contra ela dois boletins de ocorrência, enquanto ela só havia formalizado uma única denúncia.

Com isso, insinuaram que Elisângela era violenta e buscaram encontrar neste fato uma justificava para o crime.

“Para informar sobre um feminicídio, pode ser importante relatar detalhes do crime que evidenciem o ódio, o menosprezo à mulher e à sua condição humana, mas em nenhuma hipótese associá-lo a ‘motivos’ que a mulher tenha dado”, afirma Marilia.

“Nada justifica a violência e menos ainda o assassinato. Um crime é um crime e deve ser tratado conforme previsto nos dispositivos legais e de proteção aos direitos humanos”, conclui.

Além da falsa relação de causa e consequência traçada, a apuração ainda foi rasa: “A minha tia nunca foi lutadora na vida. Meus priminhos [filhos de Elisângela], de 9 e 13 anos, participam de uma escolinha de karatê e acredito que a confusão veio daí”, conta Bruna Biffi, estudante de 19 anos e sobrinha da vítima.

“E realmente, ela chegou a ter um boletim de ocorrência contra ela, registrado por ele, alegando que ela havia o agredido.

Mas o que aconteceu é que minha tia não era de ficar apanhando, quando ele batia ela revidava para tentar se defender, tanto que o corpo dele tinha duas facadas, sinal de que ela tentou sair daquela situação, mas não conseguiu”, lamenta Bruna.

A jovem ainda conta que Elisângela já havia feito inúmeras denúncias contra o agressor, com quem manteve uma “relação estável” por 17 anos, e chegou a cogitar sair de casa depois de sofrer uma tentativa de feminicídio anterior a esta que tirou sua vida.

“No dia em que ela pensou, meu primo de 9 anos começou a ficar depressivo e ela decidiu, pelos filhos, a continuar na casa mesmo não estando mais em um relacionamento com ele. Por isso, todas as noites ela dormia no quarto das crianças e rezava com eles para que acordassem no dia seguinte”, relata a sobrinha.

Uma outra forma de culpabilizar a mulher é através da escolha errada de palavras: “Mulher é assassinada”, “Mulher é jogada da janela”, “Mulher é morta à facadas”.

Muito frequentemente, omite-se o homem da história, colocando a mulher como sujeito das ações e dando a entender que há uma “ameaça fantasma” a colocando em perigo.

Buscando minimizar os erros de apuração, ao menos no que diz respeito aos dados, o Instituto Patrícia Galvão disponibilizou online o Dossiê Violência Contra as Mulheres.

Trata-se de uma plataforma multimídia que conta com fontes, dados, recomendações à imprensa e uma ferramenta para pesquisa de temas específicos de uso aberto para qualquer um, mas tendo profissionais da comunicação e ativistas digitais como público alvo.

O dossiê foi criado buscando contribuir para o aprofundamento do debate sobre o tema, pois apesar de ter cada vez mais espaço, a cobertura jornalística da violência contra as mulheres, com todos os recortes e dimensões que lhe cabem, segue descontextualizada, tratando na maioria das vezes os casos como apenas um problema individual, e não como uma questão social muito mais grave e ampla.

“Em relação às mulheres negras, não se discute como machismo e racismo se entrelaçam inclusive nas relações afetivas, tendo em vista que são parte de uma ideologia constitutiva da sociedade brasileira”, exemplifica Marilia.

Deixe uma resposta