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Feminicídio: Não se nasce mulher, morre-se!

ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE

Um xingamento, um empurrão, um soco, uma facada. A violência doméstica conjugal tem uma relação muito íntima com o feminicídio.

Embora o feminicídio não aconteça somente como a expressão máxima de um ciclo de violência vivido pela mulher dentro de seu próprio lar, a relação entre eles é inegável: 43,4% dos assassinatos femininos cometidos em 2011 no Brasil tiveram autoria do parceiro ou ex-parceiro da vítima, segundo o Mapa da Violência publicado no ano de 2012 – pesquisa mais recente sobre o tema, que ainda é de difícil apuração em decorrência da subnotificação dos casos e da falta de um padrão nacional para o registro destes dados.

Aproximadamente uma em cada cinco brasileiras reconhece já ter sido vítima de violência doméstica ou familiar provocada por um homem, de acordo com o DataSenado. Isto, no entanto, não quer dizer que elas foram ou são violentadas fisicamente todos os dias. Este tipo de agressão costuma acontecer depois de uma série de investidas psicológicas contra sua integridade mental.

“O homem diz coisas que colocam a autoestima dela lá para baixo, que fazem com que ela não se enxergue mais como gente, muito menos como detentora de direitos”, diz Naiara Silva Oliveira, psicóloga do Centro Especializado de Atendimento à Mulher (Ceam) da Asa Sul, em Brasília.

Comentários machistas e humilhantes disfarçados de observações bem-humoradas e ciúme doentio com aparência de zelo e cuidado são armas frequentemente utilizadas por homens para violentar uma mulher, mas não são as únicas.

Tirar dela o direito de ser, fazer ou ter algo também é uma grande violência. “Quando perdi meu avô eu estava grávida de sete meses e apresentava um quadro de depressão.

Mesmo assim tinha de esperar o pai da minha filha sair de casa para que eu pudesse chorar em paz. Não foi fácil, eu não tive o direito de viver meu luto porque ele não deixava. Até isso ele tirou de mim”, conta Stephanie*, 22 anos, que sofreu violência psicológica e física e uma tentativa de feminicídio depois de engravidar do ex-namorado e se mudar para a casa dele.

“Hoje, já separados, ele continua com o terror psicológico: diz que sou louca, pois faço tratamento com antidepressivos e terapia, e alega que usará isso para tomar a guarda da minha filha. Me faz muito mal ficar perto dele”, conta.

Outro aspecto comum a este tipo de violência emocional, que chega a representar 38% dos casos, é o agressor culpabilizar a parceira – seja por ter se colocado naquela situação de violência ou pelo fracasso do relacionamento, por exemplo.

“Vivemos numa sociedade patriarcal em que a responsabilidade pelo sucesso do casamento é imposta à mulher desde que ela nasce, muito embora qualquer relacionamento precise do empenho de ambas as partes para ser bem-sucedido. Esta mentalidade é um dos fatores que corroboram para que a mulher não consiga sair de uma situação de violência dentro de sua própria casa”, afirma Rosangela Penha Marques, técnica-administrativa e assistente social no Ceam de Ceilândia, cidade-satélite de Brasília. Stephanie* se sente responsável por ter se colocado numa situação de vulnerabilidade que a levou a ser vítima de uma tentativa de feminicídio.

Assim como no caso da jovem que deixou a família para viver com o namorado, isolar esta mulher do convívio familiar e dos amigos é mais um artifício machista destinado a ferir o psicológico feminino.

No momento em que ela sente necessidade de conversar com alguém próximo sobre as violências que vem sofrendo dentro do relacionamento, o parceiro já fez com que ela se isolasse, erguendo mais uma barreira a ser enfrentada e dificultando ainda mais o processo de denúncia.

Deixando o âmbito psicológico e passando para o físico, o processo de violência doméstica, geralmente, não acontece da noite para o dia, mas de forma progressiva.

Durante uma discussão o homem segura o braço da companheira com mais força, em outro momento lhe da um empurrão… E são estas agressões que evoluem para um quadro de espancamento mais grave. Mais da metade das mulheres vítimas de violência doméstica já foram agredidas fisicamente.

O último passo do agressor, que fecha o ciclo da violência, é o suposto arrependimento. “Ele a agride fisicamente e ela, num momento de raiva, pensa em procurar por ajuda. Mas pouco tempo após espancá-la ele diz se arrepender e promete que aquilo não acontecerá novamente, assumindo o compromisso de mudar para não perdê-la.

Daí, o casal faz as pazes e ele realmente passa um tempo sem agredi-la”, conta Rosangela. Mas a promessa não dura muito e a violência psicológica começa novamente.

Ainda segundo a assistente social, a intensidade das agressões aumenta de um ciclo para o outro. Neste contexto, o risco de um feminicídio cresce enquanto esta mulher não conseguir romper com a relação abusiva – mas ainda que ela seja capaz de buscar a separação, os riscos à sua vida só tendem a aumentar.

“As mulheres ficam mais vulneráveis ao feminicídio íntimo, aquele que acontece nas relações conjugais, quando querem se separar e o companheiro não. O período de maior risco seria durante os meses que antecedem e sucedem a tentativa”, coloca a professora Stela Meneghel.

As chances aumentam nesta situação pois o homem, que enxerga a mulher como sua posse, não aceita “perdê-la” – o que gera o clichê “se ela não é minha, não será de mais ninguém”. “A violência é uma maneira de adestrar as mulheres para que se mantenham em uma posição de inferioridade.

Por isso, o ápice de um contínuo de agressões é a morte de algumas delas”, completa a professora.

Conseguimos identificar certa universalidade no perfil das vítimas de violência doméstica não letal cometida pelo companheiro: não importa se são pobres, ricas, negras, brancas, elas sofrem tal opressão exclusivamente pelo fato de serem mulheres.

Quando a violência passa a ser letal, entretanto, essa universalidade deixa de ser real. “Se você for analisar o perfil das vítimas de feminicídio verá que elas são majoritariamente negras, pobres, jovens, de baixa escolaridade e vivem em áreas socialmente precárias.

São justamente estes fatores, associados às condições socioeconômicas dessas mulheres, que concorrem para o agravamento da violência até que ela seja morta”, revela a socióloga Ana Paula Portella, de Recife. “Se uma mulher de classe média e com maior escolaridade tem um parceiro que passa a abusar dela, ela perceberá rápido e terminará a relação antes que ele dê o primeiro murro.

Agora, supondo que ela esteja em um momento de fragilidade e continue no relacionamento, quando percebe que existe um risco maior de morte ela tem um carro para fugir, um cartão de crédito para comprar uma passagem de avião, conhece um advogado, conhece um policial…

Imediatamente ela aciona uma rede de apoio e de proteção que a tira daquela situação, o que a vítima mais comum de feminicídio não consegue fazer”, conclui.

Formalizar uma denúncia, buscar por ajuda de familiares e amigos ou tentar a separação, no entanto, não são decisões imediatas nem fáceis de serem tomadas por qualquer mulher. “Elas sofrem vários episódios de violência até que consigam tomar coragem para romper o silêncio.

Seja porque não dispõe de mecanismos emocionais, psicológicos ou financeiros para tal, ou porque é muito difícil para nós, mulheres, que crescemos com o ideal de casamento perfeito, do filho próximo aos pais, da família unida, deixar de lado todas essas representações sociais de um projeto de vida ideal e denunciar um homem que, na maioria das vezes, ela amou ou ainda ama, que é o pai dos seus filhos.

Sem contar o medo, a vergonha de se expor e expor a privacidade da família, a falta de credibilidade na justiça, o desconhecimento de seus direitos e da compreensão dela, mulher, como sujeito de direitos”, relata a promotora Dra. Silvia Chakian, secretária executiva e coordenadora do Grupo Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (GEVID) do Ministério Público do Estado de São Paulo.

* O nome da entrevistada foi alterado para preservar sua identidade.

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