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Feminicídio: Não se nasce mulher, morre-se!

OUTRAS MARIAS

Não se é assassinada apenas pelo companheiro. Um estranho também a mata apenas pelo fato de ela ser mulher.

Sob os holofotes está o feminicídio como o fim trágico de um ciclo de violência doméstica. Na penumbra, o estupro seguido de morte, o assassinato por lesbofobia, o gatilho puxado “em nome da honra”. Tradicionalmente, a violência contra a mulher é reduzida ao âmbito doméstico e familiar.

Ela é objeto de muitas pesquisas e estudos que culminam em leis e políticas públicas de contensão, talvez porque seja mais fácil diagnosticá-la, já que o agressor é conhecido.

Por outro lado, qualquer ocorrência no espaço público perpetrada por um agressor desconhecido é vista como mero infortúnio da violência urbana. “Você continua vendo o problema como fruto de relações interpessoais, e não advindo de uma relação maior cujo fundo é político e tem a ver com o patriarcado”, explica Stela Meneghel. “Desta forma você subestima as cifras, como se elas fossem muito menores do que de fato são”.

Um dos possíveis motivos para este tipo de postura é o fato de ser muito mais fácil procurar maneiras de culpabilizar a vítima quando ela não está submetida a um quadro de violência contínua que a atinge dentro de seu lar.

Questiona-se qual roupa ela estava vestindo, se ela estava acompanhada, se estava bêbada ou drogada, por onde ela andava. Tudo isso porque o espaço público não é considerado o lugar da mulher na sociedade. “Quando eu assumi, um jornalista escreveu que não adiantava ter uma mulher governadora se o chão não estivesse bem limpo.

Com isso, ele quis dizer que o espaço da mulher é o espaço doméstico”, confirma Margareth Coelho, vice-governadora do Piauí, que em julho deste ano foi empossada governadora em exercício em virtude de uma viagem do governador.

A violência é tida como mais grave se ela acontece em casa porque este sim seria seu lugar de pertencimento.

O que este tipo de visão ignora são as relações de poder presentes em qualquer interação entre homens e mulheres, sejam elas íntimas ou não. No caso da tentativa de feminicídio das quatro meninas de Castelo do Piauí fica claro.

O discurso de um dos agressores foi baseado no fato delas não estarem acompanhadas por nenhum homem. “Ou seja, se não estão com nenhum homem, elas estão vulneráveis”, critica a delegada Eugênia Villa. “Mulheres não morrem todas na mesmas situação.

Em Pernambuco, apenas metade delas são mortas dentro de uma relação conjugal, a outra metade morre em diferentes circunstâncias – o que, ainda assim, não quer dizer que o gênero não influencie”, aponta Ana Paula.

Em 2003, Liana Friedenbach e seu namorado, Felipe Caffé, foram sequestrados enquanto acampavam na zona rural de Embu Guaçu (SP).

O jovem, de então 19 anos, foi assassinado no segundo dia de cárcere com um tiro. A menina, de 16, ficou sob o domínio dos bandidos por cinco dias e foi estuprada por eles durante todo o período.

Ao término do quinto dia, um deles a esfaqueou até matá-la. A diferença entre o tratamento dispensado à Liana e Felipe é muito clara: ele não foi torturado, violentado, nem tratado como posse. O feminicídio tem nuances que o diferem do homicídio e estão diretamente conectadas às relações de poder mencionadas. Isso se reflete, ainda, na arma usada no crime.

Embora as armas de fogo continuem sendo o principal instrumento de assassinatos femininos – representando 49,2% deles –, o número fica pequeno quando comparados aos casos masculinos (72,4%). O interessante é observar que os outros tipos de armas utilizadas nos crimes, como objetos cortantes (facas, navalhas, giletes), perfurantes (pregos, garfos, chaves de fenda) ou contundentes (socos, bastões de madeira, pedaços de pedras), estrangulamento e sufocação somam 40% dos assassinatos de mulheres, contra apenas 20,4% dos masculinos, de acordo com o Mapa da Violência de 2012. “Geralmente a mulher é morta de forma violentíssima depois de muito agredida na face e na região da mama.

Se ela não morrer, aquela agressão deixará uma cicatriz proposital para que não consiga se esquecer daquela agressão”, coloca Margareth.

É notável, além disso, que em áreas onde a violência contra o homem é mais elevada, como zonas de conflito, a contra a mulher também é.

Nas favelas, por exemplo, quando uma mulher é assassinada por ligação com o tráfico de drogas, ela não é necessariamente traficante – muitas vezes a vítima é morta por ser considerada propriedade de um.

Em outro cenário, quando uma usuária de drogas é assassinada por sua dívida, na maioria dos casos é após ela ter sido prostituída para pagá-la e seu corpo ter deixado de ser desejável para este homem à quem ela devia.

Em situações de guerra, elas ficam ainda mais vulneráveis: “Nos locais em conflitos armados, as mulheres são as mais atingidas, então os níveis de feminicídio são muito elevados. Elas são estupradas e muitas são mortas em seguida”, coloca Stela. Mais uma situação que merece atenção, principalmente com a atual crise de refugiados no mundo, são os locais de alto fluxo migratório.

“É onde elas estão desamparadas, sozinhas, sem rede de apoio, e ficam a mercê de atravessadores e coiotes”, explica a professora gaúcha.

Neste contexto, o tráfico de mulheres as coloca na mesma situação de vulnerabilidade, com o agravante que, assim como na prostituição, essas mulheres são facilmente descartadas pelos mafiosos que as exploram quando reclamam, tentam fugir, adoecem, ou seja, não servem mais a eles.

Um exemplo infame é a Ciudad Juárez, no México, que faz fronteira com os Estados Unidos e é considerada pelo Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública a mais violenta do mundo. A cidade recebeu atenção internacional pelo número de feminicídios violentos que registra desde 1993 e pela inércia do governo na prevenção da violência contra meninas e mulheres e na punição de seus agressores. Tanto que essa realidade já foi retratada em documentários, filmes, séries de televisão, músicas e livros.

A Ciudad Juárez pode ser considerada uma amostra concentrada de como estes conceitos se manifestam: localizada numa das fronteiras mais conflituosas do mundo, controlada pelo crime organizado e pelo tráfico de drogas.

Já nos casos de feminicídios perpetrados por lesbofobia, ou seja, a patir da rejeição às lésbicas, as nuances do gênero não são tão turvas.

“As raízes mais profundas deste medo estão no receio de [o homem] perder o domínio e a posse das mulheres e seus corpos”, afirma Tania Navarro Swain, autora do livro O que é lesbianismo, professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB) e fundadora do primeiro curso de pós graduação em Estudos Feministas do país.

“As mulheres são definidas, convencidas e assujeitadas ao esquema esposa/mãe, considerado seu papel ‘natural’. O ‘natural’ passa a ser a lei que exige delas sua subserviência aos homens, já que a instituição do feminino e do masculino é feita de forma hierárquica, com predominância deste último.

Os homens, portanto, dominam, controlam, decidem, utilizam, compram, vendem, dispõem das mulheres a seu bel prazer.

Ora, o lesbianismo escapa a este esquema”, completa. Justamente por desafiar sua masculinidade, o homem acredita no estupro corretivo como uma maneira de quebrar qualquer tipo de resistência a seu domínio. “Não é preciso muito mais para que as lesbianas sejam objeto de feminicídio”, conclui Tania.

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