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Feminicídio: Não se nasce mulher, morre-se!

EU CAÍ DA ESCADA

Mais do que um hematoma no rosto, muito além de uma dor nas costas, a mulher é um ser  complexo que exige um olhar acolhedor dos profissionais da saúde.

Raimunda Sousa Leite, 59 anos, trabalhadora rural, sindicalista, pobre e negra, foi estuprada na mata em Valença do Piauí, interior do estado.

Conseguiu caminhar até a estrada, onde foi socorrida por um transeunte e levada para o Hospital de Urgência na capital, onde o Núcleo Investigativo de Feminicídios e o IML já estavam a sua espera.

Foi ouvida de pronto pela polícia, fez o exame de corpo delito e conseguiu reconhecer seu agressor antes de falecer. “Essas coisas tem que ser imediatas. Nós não podemos esperar”, alerta a delegada Eugênia Villa. Apesar da urgência exigida no atendimento à mulheres nesta situação, em muitos dos casos a morte ainda chega mais rápido.

Estima-se que mais de um terço das mulheres do mundo seja ou tenha sido vítima de agressões sexuais ou físicas durante sua vida. Inevitavelmente, isso acarreta consequências sérias para a saúde delas, que podem se manifestar de imediato ou a longo prazo.

Danos e ferimentos físicos, contaminação por doenças sexualmente transmissíveis, pelo HIV, gravidez indesejada, problemas de saúde mental como depressão, stress, distúrbios alimentares, abuso de álcool e drogas, dores crônicas, dificuldade de locomoção, fibromialgia, problemas gastrointestinais e, claro, a morte – incluindo o suicídio, a mortalidade materna resultante de abortos inseguros ou de violência obstétrica e o feminicídio.

“Mulheres que vivem em situação de violência durante um longo período de tempo desenvolvem vários problemas de saúde decorrentes das agressões”, confirma a socióloga Ana Paula Portella.

É por isso que, para a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência contra as mulheres é um problema de saúde pública global e de proporções epidêmicas.

A principal preocupação, então, é pensar na capacitação e preparação de médicos e suas equipes para reconhecer, acolher e instruir as vítimas. “Infelizmente, no curso de formação dos profissionais, seja da saúde ou de qualquer outra área, essa temática sempre foi tida como algo menor.

As pessoas tratam a mulher sem levar em consideração a sua integralidade. Um profissional da saúde, por exemplo, vai examinar o útero, a mama, e não um sujeito histórico, um sujeito que tem demandas”, explica Olgamir Amancia, professora da UnB e primeira Secretária da Mulher do Distrito Federal.

“Embora a OMS considere a violência contra a mulher um problema de saúde pública desde os anos 1990, muitos profissionais da área não a tem como tal, isso eu observei na minha pesquisa aqui em Porto Alegre”, relata Stela Meneghel. Para ela, um especialista sensibilizado com o problema pode detectar, intervir e até prevenir um feminicídio. “Uma mulher leva o filho para uma consulta, a médica percebe hematomas no pescoço dela e pergunta o que houve.

A mulher acaba contando que sofre violência e a médica entra em contato com uma casa de passagem, que infelizmente são pouquíssimas nesse país, consegue uma vaga para a mulher e a instrui a voltar com o filho e os documentos no dia seguinte, sem dizer nada ao companheiro, para que seja transferida para a casa”, exemplifica. Mas não é tão simples.

“Nós nos deparamos com situações onde, na saúde, os profissionais olham a mulher e, ainda que possam identificar que aquele sofrimento traduzido, não o fazem, pois nosso sistema de saúde não está preparado para a escuta.

A mulher tem muita dificuldade de chegar e se abrir se o profissional não lhe der este espaço para falar e, quando elas falam, eles não sabem como agir”, pontua Olgamir.

“O feminicídio, sem dúvida, é um problema de saúde pública, mas ele é o desfecho de uma situação anterior que impacta mais o sistema de saúde, que é a violência contra as mulheres”, explica Ana Paula.

Da mesma forma que Stela, ela acredita que o papel da saúde se concentra na detecção de situações de violência a fim de evitar um possível feminicídio. E isso, além da sensibilidade de perceber uma vítima, também está no atendimento de mulheres que chegam espancadas ou violentadas sexualmente aos postos de atendimento, como Dona Raimunda. “Estupro, por exemplo, é uma situação em que você tem que atender a essa mulher em todos os sentidos.

Tanto do ponto de vista de saúde mental, pelo trauma que ela sofreu, quanto do conjunto de medidas que temos que tomar no mais curto prazo, como tratamentos para prevenir a contração de DSTs e gravidez indesejada” conta Carmen Regina Ribeiro, chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba.

“Aqui, desde 2001 temos três hospitais que oferecem esse serviço. O IML se desloca até eles, tanto para não perder provas periciais quanto para poupar a mulher de ter que repetir sua história ou passar pelo exame ginecológico várias vezes”, completa.

Carmen também destaca outra dificuldade dos profissionais da área: “O aborto legal em caso de estupro é uma conquista que vai e volta.

Muitos profissionais têm medo, exigem o boletim de ocorrência ou a ordem judicial. Todo tempo temos de estar indo atrás e monitorando.

Muda o chefe de serviço, começamos tudo de novo. É um trabalho constante e é o principal que podemos fazer”, afirma. Infelizmente, a conquista deste direito parece perdida novamente: a Comissão de Cidadania e Justiça da Câmara Nacional aprovou o texto do Projeto de Lei nº 5.069, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que prevê impor ainda mais obstáculos às vítimas de violência sexual.

De acordo com a proposta, o oferecimento de pílula do dia seguinte para mulheres vítimas de estupro será prerrogativa retirada da norma vigente, assim como sairá da lei a obrigação de fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais que possuem e sobre todos os serviços sanitários disponíveis.

O movimento feminista se manifestou contra a aprovação através da campanha “Pílula fica, Cunha sai!”, à qual várias organizações de mulheres aderiram.

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