em

Feminicídio: Não se nasce mulher, morre-se!

MARIA TROUXE AS OUTRAS

Da Penha é o sobrenome dela, que abriu portas para as outras tantas Marias.
A legislação, desde então, não pôde ficar inerte às políticas de gênero.

Recente: esta é a palavra que melhor define a legislação brasileira que pretende promover a igualdade entre gêneros no país. A primeira Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) – agora Ministério da Cidadania – foi criada somente em 2003; a Lei Maria da Penha, sancionada em 2006; a Lei do Feminicídio, por sua vez, apenas em 2015. Apesar de as mulheres ainda estarem longe de ter os mesmos direitos que os homens na prática, as conquistas são bastante significantes para a luta feminista, a começar pela Lei Maria da Penha.

Considerada uma das três melhores leis do mundo sobre violência de gênero pela Organização das Nações Unidas (ONU), a Lei 11.340 é baseada na história da cearense Maria da Penha Maia Fernandes. A farmacêutica sofreu duas tentativas de feminicídio por parte do marido e, na primeira delas, ficou paraplégica. Mesmo quinze anos após o primeiro julgamento dos crimes, a justiça brasileira não havia condenado o agressor. Foi só com a intervenção Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (OEA), em 2002, que ele foi preso e começaram a ser tomadas medidas judiciais visando a elaboração do Projeto de Lei.

A defensora pública e coordenadora auxiliar do Núcleo de Proteção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM) do Estado de São Paulo, Ana Rita Souza Prata, acredita que a lei faz com que as mulheres em situação de violência doméstica reflitam sobre sua realidade, as encorajando a denunciar os ataques sofridos.

Os números, no entanto, mostram que a prática não é tão otimista assim: quase 40% das mulheres que já sofreram algum tipo de agressão afirmam ter procurado alguma ajuda logo após a primeira vez, mas para as demais a tendência é dividir a história com alguém só do terceiro ataque em diante, ou então se manter calada – o que acontece em 32% e 21% dos casos, respectivamente.

“Apesar de a lei ter dado visibilidade ao sofrimento de mulheres nesta situação, de ter rompido com a tradição histórica de tolerância à este tipo de violência e também com a ideia de que as agressões eram uma questão familiar sobre a qual a justiça não poderia intervir, ela ainda é passível de críticas”, pontua a promotora de justiça Dra. Silvia Chakian.

Uma dessas críticas é que a Lei Maria da Penha contribui com a ideia de generalização da violência contra a mulher como exclusivamente doméstica. “A Lei Maria da Penha está muito aquém, deixa um déficit enorme”, afirma a delegada de polícia e ex-sub-secretária interina de Saúde Pública do Piauí Eugênia Villa.

“Ela só estabelece relações interpessoais, quando o agressor é definido. A Convenção de Belém do Pará estabelece três níveis de violência [de gênero]: a doméstica e familiar, a que acontece na comunidade pelo fato de sermos mulheres e as que ocorrem em face da ineficácia do Estado. A Lei Maria da Penha só pega a primeira”.

Stela também explica: “Você deixa de lado os espaços públicos, onde muitas mulheres são atacadas e mortas em função da violência sexual, por exemplo, e nesses casos são agressores desconhecidos”.

Ainda que esse não seja o propósito da lei, que foi criada especificamente para combater a violência doméstica e familiar, é urgente que pensemos na segurança física e psicológica da mulher nos espaços públicos, ainda dominados pelo machismo.

Algumas iniciativas, tanto governamentais quanto coletivas, incitam o diálogo acerca do tema: em Curitiba, a Secretaria Extraordinária da Mulher investe em campanhas de conscientização que pensam na presença da mulher em diferentes espaços, como as ações “Não quer dizer não, respeite nossas mulheres” lançada em quatro idiomas durante a Copa do Mundo, e “Busão sem abuso” que, como nome já diz, pretende combater o assédio no transporte público.

No segundo semestre deste ano, o Metrô de São Paulo iniciou uma campanha com objetivo parecido por pressão das usuárias, que tem como tema a frase “Você não está sozinha”. Talvez a mais famosa dessas iniciativas é independente e encabeçada por mulheres: a campanha “Chega de fiu fiu” começou como uma pesquisa sobre assédio na rua e virou um mapa colaborativo e um documentário financiado coletivamente com lançamento ainda indefinido.

Outra questão frequentemente levantada sobre a lei é o perfil da mulher que lhe cedeu o nome: “A Lei Maria da Penha é Barbie, pois ela traça bem o esteriótipo da mulher europeia.

A Maria da Penha é uma mulher de classe média, autônoma e branca, mas será que no Brasil todas nós somos assim?”, questiona Dra. Eugênia. “Não. Nós temos índias, negras, mulheres rurais, do campo e da floresta que não preenchem este esteriótipo. Então mesmo dentro da lei você vai ter conflitos”.

A delegada não se considera derrotista por este pensamento, apenas acredita ser um discurso que constata a realidade e demonstra a necessidade de elaborar estudos que ampliem o alcance da interpretação da lei.

Ana Paula explica: “Sem a Lei Maria da Penha, a lei de homicídio era aplicada indistintamente para homens e mulheres. Com a criação dela os casos começam a diminuir, mas passa-se a aplicá-la indistintamente para qualquer tipo de mulher, e aí você favorece quem?

Aquelas que estão em melhor condição. Então, dentro da própria lei você precisa ter uma linha que observe melhor o grupo mais vulnerável, e as mulheres negras são também as mulheres mais pobres, com menos escolaridade e que moram nas áreas com pior infraestrutura”.

Além das críticas à lei em si, é preciso pensar melhor na viabilidade de sua aplicação jurídica. Dentre os cinco tipos de violência reconhecidos legalmente (veja o box na Parte 1), uma delas é especialmente complexa de se provar no tribunal.

“Colher provas de violência psicológica é complicado. É preciso o laudo de um psicólogo comprovando que as ações do agressor impactaram a saúde mental da vítima, mas, pelo ritmo do processo judicial, essa avaliação muitas vezes só é feita após a mulher ter passado mais de um ano fora daquela situação de violência, então as consequências possivelmente não estão tão pronunciadas”, explica a advogada especialista em direitos humanos Alichelly Ventura, de Manaus. Essa dificuldade tem um motivo para acontecer, de acordo com a Dra. Eugênia. “A lei é feita para o homem.

O Código Penal estabelece somente a violência física, porque somos tidas como uma coisa em que o mais importante é o nosso corpo”, ressalta. Os profissionais que lidam com a lei buscam outras maneiras de levar o caso adiante.

“A questão da violência psicológica ainda é bem vulnerável, porque quando a Lei Maria da Penha conceitua os tipos de violência, ela não está estabelecendo crimes. Então você tem que tentar adequar aquela situação que a mulher narra a um crime já estabelecido na nossa legislação, e nós não temos nenhuma lei que criminaliza violência psicológica.

Tentamos enquadrar como perturbação da liberdade individual, injúria, ou algum outro tipo penal”, revela Ana Cristina Santiago, delegada-chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM) do Distrito Federal.

A delegacia, localizada na Asa Sul de Brasília, foi considerada pela Altus, uma aliança global formada pro seis ONGs, a melhor delegacia da mulher do Brasil.

Não é por acaso: “Primeiro, eu tenho policiais experientes que estão aqui há muito tempo, principalmente no atendimento. Quando recebo policiais novos, tenho uma preocupação que vai além de falar sobre a lei, porque eles entendem sobre ela.

Mais do que capacitação, acredito em sensibilização para que ele entenda como se desenrola essa violência, qual o seu papel como agente público e consiga se desvestir de seus valores pessoais.

É essencial que eles compreendam que uma mulher, até chegar aqui no balcão da delegacia, rompeu diversos obstáculos internos – morais, religiosos, culturais, familiares – e ela não precisa sofrer qualquer tipo de revitimização aqui dentro”, relata Ana Cristina.

Apesar de esses cuidados serem exceções, não regras, nas DEAMs do Brasil, as equipes são minimamente preparadas para lidar com a violência de gênero e têm uma compreensão do que ela significa politicamente – qualidades essenciais também para a investigação de um caso de feminicídio. Porém, infelizmente, isso não cabe à elas.

Ao ligarmos para a delegacia da mulher de Vitória, informamos o tema da reportagem e logo fomos interrompidas: “Aqui é só mulher viva”, nos informaram. “Vocês precisam ligar na delegacia de homicídio”.

Em Vitória, especialmente, há uma delegacia dedicada apenas aos homicídios de mulheres, criada em 2010 após uma pesquisa do Instituto Sangari colocar a capital capixaba como o primeiro lugar na ocorrência de tais crimes no país. “Dentre as nossas atribuições, além apurar o crime em si, a intenção é que se produzam dados a serem usados em pesquisas”, conta o delegado titular Adroaldo Lopes Rodrigues.

Apenas criar uma delegacia especializada, entretanto, não é o bastante, visto a importância da sensibilização de seus funcionários.

A Delegacia Especializada de Homicídio Contra a Mulher de Vitória (ES), como é chamada, divide suas ocorrências em três categorias: passionais, ligados ao tráfico de drogas e “outros”, segundo Adroaldo. Além do uso da palavra “passional”, terminologia antiquada e criticada por evocar a ideia do crime ter sido cometido por amor ou irracionalmente, por forte emoção, os crimes desta categoria são os únicos considerados como feminicídio – trata-se de um modo de pensar ainda comum, que observamos inclusive em várias DEAMs, de só compreender a violência como sendo de gênero quando o agressor é definido.

É simplista considerar que todo homicídio feminino ligado ao tráfico, por exemplo, está livre de qualquer opressão de gênero, quando muitas vezes mulheres são assassinadas por serem mães, filhas, esposas ou companheiras de um traficante do qual outro homem quer se vingar – elas geralmente, por sua condição de mulher, não andam armadas e tem menos mobilidade que eles, tornando-se alvos mais fáceis. “Elas se tornam território de vingança neste tipo de situação”, afirma Ana Paula.

Foi por entender que é preciso investigar os feminicídios como crime de natureza própria, com características que diferem do homicídio qualificado, que a Secretaria de Segurança Pública do Piauí criou, no dia 4 de março deste ano, o primeiro Núcleo Investigativo Policial de Feminicídio do país, sob a coordenação da delegada Tânia Oliveira.

A primeira atuação do Núcleo foi no Dia Internacional da Mulher, em Picos, no interior do estado. Embora o caso não tenha sido contemplado pela lei, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff no dia seguinte, já foi investigado pela delegada Tânia e sua equipe. “Nos interessa demonstrar ao poder judiciário e ao Ministério Público essa vertente do gênero, das relações de poder, de que estão assassinando mulheres pelo simples fato de serem mulheres”, explica dra. Eugenia, que na época da criação do Núcleo ocupava o cargo de subsecretária interina de Segurança Pública.

Depois disso, foi baixada também uma portaria determinando a notificação compulsória de qualquer assassinato de mulher no Piauí ao Núcleo Investigativo, que, por sua vez, está fazendo um trabalho de coleta de dados, traçando perfis de vítimas e assassinos, além das características de cada crime.

A Secretaria espera que esse material ajude a entender melhor como os feminicídios acontecem e, a partir disso, pensar em novas políticas públicas para combatê-lo. O Piauí, hoje, é o estado que registra menos mortes de mulheres por 100 mil habitantes, mas com essa captação de dados, espera-se que sua posição mude.

Mesmo sendo pioneiro na criação Núcleo Investigativo Policial de Feminicídio, o estado apresenta a mesma dificuldade vista em outros lugares em despir de ideologias patriarcais os funcionários públicos que lidam com casos de violência contra a mulher.

Em maio de 2015, quando quatro adolescentes foram agredidas, violentadas e jogadas de um penhasco de 10 metros de altura em Castelo do Piauí, crime que teve repercussão internacional, Dra. Eugênia Villa pediu que apenas mulheres ficassem encarregadas de fazer a oitiva das vítimas e também que apenas médicas legistas executassem os exames de corpo delito, mas as investigações ficaram por conta de delegados homens.

“Três dias depois eu reuni todos os delegados na delegacia geral para compreender como estava sendo a dinâmica da investigação. Alguns achavam que era homicídio torpe, fútil”, relata. “Na ocasião eu tive de ter um discurso mais incisivo, pois não adianta colocar uma lei e achar que ela vai resolver a questão de desvelar o feminicídio”.

Por ser muito recente, é difícil dizer se a Lei do Feminicídio vai “pegar”, como aconteceu com a Lei Maria da Penha. O que se pode observar é que ainda há uma dificuldade da apropriação do termo e, pelo ritmo da justiça brasileira, poucos casos foram julgados sob o vigor da nova legislação – o que talvez contribua para esta situação.

De cunho punitivo, ela altera o Código Penal para prever o feminicídio como um tipo de homicídio qualificado e incluí-lo no rol de crimes hediondos. O período de reclusão passa a ser de 12 a 30 anos para o assassino, enquanto um homicídio simples pode ter penas de 6 a 20 anos. “No entanto, os crimes de homicídio em âmbito de violência doméstica, muitas vezes já eram julgados como hediondos, tendo penas muito parecidas com o que a lei estabeleceu agora”, revela a defensora pública Ana Rita. “E, mesmo assim, eles não deixaram de existir”. A opinião dela é compartilhada pelo delegado Adroaldo, que diz não ter visto muita mudança prática, pois nos casos “passionais”, como ele se refere, buscava-se adicionar uma qualificadora ao homicídio, seja como fútil ou torpe. “A lei é uma grande conquista do movimento feminista pois estamos afirmando que não somos fúteis e nem torpes, nós estamos sendo mortas por sermos mulheres.”, contrapõe Dra. Eugênia. “ É uma questão de tempo até mudarmos o caput do artigo de homicídio para assassinato. Pode parecer bobo, mas é muito importante”.

Para o promotor de justiça do III Tribunal do Júri da Capital do Ministério Público do Estado de São Paulo, Dr. Ivandil Dantas, que lida com casos de crimes praticados contra a vida na Zona Sul da capital há mais de vinte anos, o dia a dia no júri costumava ser bem diferente antes da sanção da lei – principalmente em cidades interioranas.

“A lei diz que o homicídio simples, aquele que não é qualificado, pode ter uma redução de pena e se transformar em homicídio privilegiado quando a vítima, de algum modo, contribui para sua morte.

Antes da Lei do Feminicídio era possível encontrar profissionais conservadores e machistas que entendiam que o assassino cometeu o crime porque a mulher o provocou, fazendo com que ele perdesse a cabeça e agisse dessa maneira.

A partir deste viés surge o conhecido termo “homicídio passional”, transferindo à vítima a responsabilidade de sua própria morte. Ou seja, ao invés do sujeito ter sua pena agravada, ela era diminuída e justificada pelo comportamento negativo da vítima.

A Lei do Feminicídio diz que pouco importa o julgamento pessoal do promotor, se houve o assassinato de uma mulher dentro de uma relação doméstica por conta de sua condição feminina, isso já qualifica o homicídio. Neste sentido, ela veio agravar a pena para tentar impedir este tipo de subterfúgio, onde culpabiliza-se a vítima para justificar o crime”, relata.

Aprovada às pressas para ter sua sanção anunciada no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a Lei do Feminicídio sofreu diversas concessões que resultaram em alterações no texto original, deixando-a extremamente ligada à violência doméstica.

Perante a legislação brasileira, um feminicídio é um homicídio “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”, quando o crime envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou descriminação à condição da mulher.

A proposta, ainda, é descrita como uma continuação a Lei Maria da Penha na luta pela igualdade de gênero. “A Lei Maria da Penha foi ponto de partida e não de chegada na questão do enfrentamento à violência doméstica.

Por isso, a Lei do Feminicídio vem como um aprimoramento legislativo necessário”, opina a promotora Dra. Silvia. Os demais casos de feminicídio podem ter dificuldade em ser contemplados pela nova lei, que traz uma grande ambiguidade de interpretação quando especifica em seu primeiro artigo apenas aqueles derivados de relações conjugais ou familiares. “As fragilidades das leis, no entanto, não reduzem em nada a importância que elas tem”, conclui a socióloga Ana Paula.

Deixe uma resposta