em

LEGADO DA NOSSA MISÉRIA (parte 2) ‘Minha Rua Minha Vida’ por Fernando Moura Peixoto

“Até que grau de distorção um indivíduo continua sendo ele mesmo? Até que grau de distorção um ser amado continua um ser amado? Durante quanto tempo um rosto querido que se distancie na doença, na loucura, na raiva, na morte, continua reconhecível? Onde está a fronteira atrás da qual um ‘eu’ deixa de ser um ‘eu’?” (MILAN KUNDERA)

Como na primeira parte, LEGADO DA NOSSA MISÉRIA 2 trata do drama vivido pela população de rua, seres humanos  desassistidos pelo Poder Público e sociedade, em um “Minha Rua, Minha Vida” por sua conta e risco. As imagens foram obtidas entre 2012 e 2014, nas ruas da zona sul do Rio de Janeiro, e algumas são chocantes.

Mendigo não vota, não elege político, não consome nem paga imposto. Incomoda muito e não recebe atenção. Nos eventos sediados pela cidade são escondidos em baixo do tapete da hipocrisia. Na Copa do Mundo de 2014 – “a Copa das tropas” e do vexame dos 7 x 1 – cerca de setecentos foram retirados das vias públicas. A maioria sobreviveu e retornou, sem reintegração social e assistência. Nos Jogos Olímpicos de 2016 o fato se repetirá. Até quando?

A prática de dissimulação é antiga, herança de regimes anteriores. Em 1994, Rubens Ricúpero, ministro da Fazenda de Itamar Franco (1930 – 2011), sem saber que estava sendo captado por antena parabólica, declarou em “off”, numa conversa informal em entrevista na televisão: “Não tenho escrúpulos… O que é bom a gente fatura; o que é ruim a gente esconde”. Os governantes de hoje eram então ferrenhos opositores do “stato quo”. Mesmo com a demissão do ministro e protestando energicamente, perderam as eleições para FHC e o Plano Real. Mas direitinho – e inescrupulosamente – assimilaram o ensinamento.

Três fotos a destacar: o alcoólatra Renato, bom sujeito, articulado, admite o seu problema e anda sempre com uma pequena bíblia no bolso. Mesmo caído no chão, embriagado, ao lado de uma jardineira, está a ler a palavra de Deus. E uma carente exibe nas costas de sua camiseta preta a inscrição: “NASCI NA GUERRA, ME CRIEI NA BATALHA, MEU NOME É REVOLTA”. Faltou-lhe acrescentar “O MEU DEUS NUNCA FALHA” para completar a letra da música evangélica.

O vídeo é dedicado ao amigo Tancredo, que conheci no interior do antigo supermercado Extra, em Botafogo. Ficava boa parte do dia sentado logo na entrada, apreciando o movimento e as moças bonitas, vendo a vida passar – cheguei a pensar que se tratava de um empregado aposentado a quem era permitido esta regalia. Gostávamos da mesma funcionária graciosa da seção de perfumaria e batíamos longos papos.

Contou-me que fora garçom de um restaurante na Praça XV, e depois se tornara sócio minoritário em outro estabelecimento. Sofreu um atropelamento que lhe causou deformação na cintura, obrigando-o a andar sempre com bengala metálica. Recebera por causa disso uma pensão vitalícia. Dizia que a filha era advogada e o via frequentemente.

Tempos depois o reencontrei deitado em um banco, na calçada defronte ao supermercado Pão de Açúcar, o menorzinho, na Rua Voluntários da Pátria. Estava vivendo ao relento, largado pela família. Ajudava-o sempre que podia, mas era triste vê-lo assim.

Surgiu então uma senhora que cuidou dele, internando-o num asilo de idosos, onde parece que está até hoje. É a realidade de quem é abandonado, mesmo tendo algum rendimento para o sustento. Aqui vale o ditado: “Velhice é uma m…”.

Como pede a gravidade do assunto, TODO O SENTIMENTO (de Cristóvão Bastos e Chico Buarque) embala a trilha sonora, a cargo do instrumentista mineiro THADEU VENTURA, sax-tenor, acompanhado de WEBER LOPES, violão, e FIRMINO CAVAZZA, violoncelo.

“O ideal do aficionado da fotografia é possuir a melhor máquina para tirar fotografias de miseráveis.”

RAMÓN GÓMEZ DE LA SERNA (1888 – 1963)

´Greguerias’

Fernando Moura Peixoto (ABI 0952-C)

 

Deixe uma resposta